Acórdão n.º 62/2025 do Tribunal Constitucional
Recentemente, a SIC exibiu na Grande Reportagem intitulada “O Filho”, a luta judicial protagonizada por Andrew Salgueiro Maia que, aos seus 28 anos e 4 meses, intentou uma ação judicial para conseguir ver reconhecido que Fernando José Salgueiro Maia, Capitão de Abril, era o seu progenitor biológico. Sucede, no entanto, que o Tribunal de Santarém se pronunciou pela improcedência do pedido, com o fundamento de estar ultrapassado o prazo legal para intentar a ação. Apesar desta decisão, na pendência do processo, o Tribunal aceitou o pedido de exumação do corpo de Salgueiro Maia para recolha do seu ADN, que veio confirmar que Andrew é seu filho biológico com 99,99% de certeza.
Coincidentemente, no início deste ano, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre a inconstitucionalidade dos prazos de 10 anos após a maioridade para intentar uma ação de investigação da maternidade/paternidade ou 3 anos após o conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação, previstos nos artigos 1817.º e 1873.º do Código Civil.
Ao longo dos tempos, estes prazos foram sendo alvo de diversas críticas, o que levou o legislador a alterar, em 2009, estas disposições procedendo ao seu alargamento de 2 para os atuais 10 anos. No entanto, as dúvidas sobre a constitucionalidade destes prazos não foram apaziguadas e/ou dissipadas, continuando vários autores a pronunciarem-se contra tais prazos que, como no caso retratado na Grande Reportagem da SIC, impede o reconhecimento legal da paternidade.
No âmbito do Acórdão n.º 62/2025 do Tribunal Constitucional, este Tribunal foi, pois, chamado, após decisão do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”), a pronunciar-se sobre a constitucionalidade daquelas disposições – depois de um tribunal de 1ª instância ter declarado procedente um pedido de investigação da paternidade apesar de já estarem ultrapassados os prazos legalmente previstos para esse efeito. Anteriormente, o STJ tinha-se recusado a aplicar os prazos estabelecidos nos artigos 1873.º e 1817.º do Código Civil, pronunciando-se pela inconstitucionalidade das normas, contidas no n.º 1 e na al. c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, que definem a existência de prazos de caducidade para propor uma ação de investigação da paternidade (e da maternidade).
Veio, então, o Tribunal Constitucional, numa decisão inédita nesta matéria, julgar inconstitucional – sem força obrigatória geral – os prazos estabelecidos para propositura destas ações, por violação dos artigos 36.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa. Esta decisão do Tribunal Constitucional é, particularmente, importante, para que se deixe de onerar o Requerente que são, em regra, os filhos que procuram ver reconhecida a sua paternidade/maternidade, com um prazo para iniciar o processo.
Na nossa ordem jurídica, encontra-se constitucionalmente previsto o direito à identidade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade, o direito à verdade, direito a constituir família, entre outros, do investigante, em contraposição ao direito à reserva da vida privada do investigado que implica uma proteção da confiança e de expectativas depositadas na continuidade de uma situação jurídica anterior, levando também ao seu direito à paz pessoal e patrimonial.
O Tribunal Constitucional, neste último Acórdão, deu prevalência aos direitos do investigante. A ponderação feita pelo Tribunal merece todo o acolhimento, porquanto com o avançar da tecnologia é possível determinar, mesmo após o decesso de alguém, a paternidade com quase 100% de certeza, não se justificando, pois, limitar o direito de alguém a ver reconhecida judicialmente a paternidade/maternidade com o singelo fundamento de que o Investigante “demorou muito tempo a intentar a ação”.
Acresce, ainda, que, no nosso ordenamento jurídico, não há – nem poderia haver sob pena de ser inconstitucional -, um direito a não assumir a paternidade de um filho. A limitação temporal aqui em causa, parecia admitir uma interpretação diversa, permitindo que, apenas pelo decurso do tempo, surgisse tal direito na esfera jurídica do investigado. Este resultado não merecia qualquer acolhimento do ponto de vista jurídico, violando a ordem pública.
Admitir a caducidade deste direito seria igualá-lo a um qualquer direito patrimonial, considerando a natureza pessoalíssima dos direitos aqui em causa, tal igualdade é inadequada e inconstitucional.
Conforme afirma a Conselheira Maria Clara Sottomayor, no Acórdão que deu origem a esta decisão do TC, “por dizerem respeito à dignidade mais profunda do ser humano – o direito a saber quem é e de onde veio – o Estado não tem legitimidade para avaliar e hierarquizar estes motivos em função do decurso do tempo (ou de qualquer outro critério), fixando um prazo para o exercício do direito da ação de investigação da paternidade.”
Dada a proeminência do tema, é expectável – e desejável – que esta matéria continue a ser apreciada pelos Tribunais e, em especial, pelo Tribunal Constitucional, almejando-se, em última instância, que o Código Civil venha a ser alterado ou, porventura, que o Tribunal Constitucional se venha a pronunciar com força obrigatória geral.